MEMÓRIAS À VOLTA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (POR JOSÉ RUY) – 1

Iniciamos hoje, com o maior prazer, a publicação de uma série de artigos assinados por um dos nomes mais ilustres da BD portuguesa, cuja longa carreira recheada de êxitos já abarca mais de sete décadas.

José Ruy Matias Pinto é, de facto, um caso espantoso de longevidade e amor à arte da ilustração, com obra dispersa por inúmeros jornais, livros, revistas e álbuns. Ainda hoje a sua actividade se espraia por vários domínios, incluindo o de escritor memorialista, em homenagem, sobretudo, à «época de ouro» da BD portuguesa, durante a qual aprofundou com afã os seus conhecimentos e o seu virtuosismo técnico e artístico, cimentando as relações profissionais e os laços de amizade com outros nomes ilustres da 9ª Arte portuguesa, como Eduardo Teixeira Coelho, António Cardoso Lopes (Tiotónio), Raul Correia, Roussado Pinto, Adolfo Simões Müller, José Garcês, Artur Correia e muitos mais.

Um dos seus maiores títulos de glória é, sem dúvida, o de ser presentemente o único autor de BD (ou histórias em quadrinhos) dessa época que se mantém ainda em actividade, com uma produção vasta e assinalável, mesmo nos últimos anos.

A José Ruy, que muito nos honra com esta valiosa colaboração, os melhores agradecimentos do Gato Alfarrabista Júnior, um blogue que se considera herdeiro do Gato Alfarrabista. Recordamos que José Ruy foi presença marcante na carismática revista O Mosquito, onde colaboraram alguns dos maiores mestres da BD portuguesa, como minuciosamente nos elucida, com a sua prodigiosa memória, nestes primeiros artigos, enriquecidos também com algumas imagens inéditas.

MEMÓRIAS À VOLTA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (1)

por José Ruy

No início da década de 1950, partilhava um atelier com o Eduardo Teixeira Coelho, na Calçada do Sacramento, ao Carmo, em Lisboa. Por essa altura, colaborámos na exposição de Histórias em Quadrinhos, a primeira feita em Portugal, no Palácio da Independência, e eu esboçara uma prancha, como exemplo do desenrolar do processo de trabalho, para estar exposta [que mostramos a seguir].

Repare-se que as primeiras vinhetas estão ainda em esboço, enquanto a última tem já o acabamento a tinta-da-china. A razão disso é para evitar arrastar o lápis, com a mão, sobre as vinhetas inferiores, enquanto trabalho as de cima. Costumo começar o desenho por baixo da direita para a esquerda, e quando este está coberto a Nankim (tinta da china), sigo para os outros, da última vinheta para a primeira.

Em cada vinheta, esboço ligeiramente a lápis as figuras nas posições que pretendo, e depois utilizo o modelo vivo. Na vinheta 5, só uma das personagens já está desenhada em definitivo. Esta história ficara sem seguimento, pois tratava-se apenas de um exemplo para a referida exposição.

Mas o tema era o da minha preferência, os animais, e o melhor ambiente para os localizar, naturalmente que tinha de ser o continente africano. Comecei a desenvolvê-la com a intenção de a publicar n’«O Mosquito». Dei-lhe o título de «O Reino Proibido», e a trama do argumento andava à volta de uma tribo de certa região de África que se opunha à passagem de um caçador branco pelo seu território, criando uma série de problemas.

Surgira entretanto, havia pouco tempo, a revista «Cavaleiro Andante» e o Coelho, que tinha entre mãos uns trabalhos de publicidade e fizera uma interrupção na colaboração n’«O Mosquito», aconselhou-me a tentar antes publicar a história nessa nova revista, pois como pertencia ao «Diário de Notícias» pagavam melhor a colaboração. Além disso, no «Cavaleiro Andante» fora publicado um pedido da Direcção para que jovens autores enviassem histórias desenhadas, de modo a poderem ser publicadas.

Hesitei, mas ele encorajou-me em face do nível já alcançado. Enrolei três pranchas e levei-as à redacção do «Cavaleiro Andante», que era no próprio edifício do «Diário de Notícias», e deixei-as à secretária de Adolfo Simões Müller, o Director, para apreciação.

Passadas duas semanas, como não recebesse notícias, resolvi voltar lá, pois pensei que podiam ter perdido o meu contacto. Reparei que o rolo estava no mesmo sítio onde o deixara. Achei estranho que em duas semanas não tivessem a curiosidade de ver o que eu levara. Delicadamente disse que pretendia acrescentar algo nos originais e se podia levá-los, o que me pareceu ser um «alívio» para a secretária. Trouxe comigo a história, sem vontade de lá voltar.

Também o E. T. Coelho achou estranho esse desinteresse e o destino da história foi mesmo «O Mosquito» [a partir do nº 1335, de 9 de Abril de 1952].

Página de «O Reino Proibido» publicada n’«O Mosquito» nº 1336, de 12/4/1952

O Raul Correia [director d’O Mosquito] ficou contente e, além dessa narrativa ilustrada, fiquei também a fazer capas sobre outras histórias que o jornal publicava, de origem estrangeira. O Coelho nessa altura, como referi, estava ocupado a fazer publicidade, capas de livros e desenhos para o jornal «O Século».

Deixara um vazio no velho «O Mosquito» [depois da publicação de «Os Doze de Inglaterra»]. O meu papel foi, modestamente, preencher essa lacuna com as minhas parcas possibilidades.

Algumas capas de José Ruy, com destaque para a história «O Reino Proibido». O cabeçalho d’«O Mosquito» foi também desenhado por ele.

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