MEMÓRIAS À VOLTA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (POR JOSÉ RUY) – 2

No artigo anterior publicado neste blogue descrevi como voltei a ser colaborador d’O Mosquito, em 1952, desta vez com uma história em quadrinhos. Nesta altura da vida d’O Mosquito, a impressão era executada na gráfica Irmãos Bertrand e não na oficina histórica, e as cores já não eram feitas por mim em litografia.

Nesse ano de 1952, trabalhava já em publicidade no atelier do Manuel Rodrigues, com Sebastião Rodrigues, grandes criadores gráficos. Fazíamos de tudo, desde embalagens, logótipos, montras e organização de exposições para organismos e empresas que queriam mostrar o desenvolvimento.

Atelier de Sebastião Rodrigues

Eis um exemplo do nosso trabalho nesse atelier. Em cima, à esquerda, uma exposição sobre obras públicas; não nos cingíamos a apresentar na parede os mapas e gráficos, construíam-se uns móveis próprios para receber a exposição, sempre diferentes. Utilizávamos os serviços de uma serração que ficava perto do atelier, na Rua de São Pedro de Alcântara.

Na foto ao centro, poso ao lado de Sebastião Rodrigues, segurando um globo em acrílico que íamos decorar para figurar numa montra. À direita, cartazes já executados para algumas companhias de aviação. Eu era um dos quatro elementos residentes, mas em alturas de grandes montagens, como na Feira Popular ou na Feira das Indústrias, em Lisboa, juntávamos mais colegas ao grupo.

Nesta foto, a partir da esquerda e a seguir a mim, o Leonildo Dias e o Abreu Lima, antigos colegas da Escola António Arroio, o Sebastião Rodrigues, o Costa Pinheiro, que partiria para a Alemanha, a fazer carreira; em 1º plano, um primo do Sebastião, cujo nome não recordo, e o Vasco Lapa, que engen-drava sempre maneira de abrilhantar as montras, com uma qualquer corda de grafonola para mover elementos expostos, luzes intermitentes, reóstatos e outras coisas… O Manuel Rodrigues, o chefe do atelier, foi o fotógrafo, por isso não apareceu na imagem. Era, de uma maneira geral, com estes colegas que fazíamos os grandes eventos.

Também aí eu ia desenhando os colegas. Na imagem ao lado: um apontamento do Vasco Lapa a pintar sobre um painel; e em baixo: o Leonildo Dias, num momento de repouso. Qualquer papel servia para base, até folhas de um catálogo da Casa Ferreira, das tintas. Eram instantâneos rápidos, sem querer perder muito tempo.                              Nos serões livres continuava a desenhar «O Reino Proibido», no atelier que mantinha com o Eduardo Teixeira Coelho, numa cadência de duas páginas semanais, e mais as capas que o Raul Correia me pedia.

De repente, surgiu-nos a encomenda de uma grande exposição em Coimbra, na Universidade, e tive de partir com a equipa para a Cidade Universitária. Lá não tinha condições para fazer as pranchas para O Mosquito. Como mantinha um avanço de algumas semanas, calculei que isso me daria tempo até acabarmos a exposição e regres- sarmos a Lisboa, sem haver falhas na publicação.

A história ia já em 26 páginas e o seu desfecho aproximava-se, mas a situação em que deixara as personagens era dramática. Depois dos «heróis» da aventura terem fugido da tribo que os detinha prisioneiros, conseguiram alcançar um rio. Aí apoderaram-se das pirogas de uns pescadores indígenas e navegaram em direcção à foz, para chegarem à costa oceânica e conseguirem que algum navio os levasse para a Europa.

Página publicada n’O Mosquito nº 1359, de 2/7/1952

Mas, em dada altura, um grupo de hipopótamos implicou com as embarcações, pondo em risco a sua navegação. Remando vigorosamente, estavam a afastar-se dos paquidermes, quando os crocodilos que se encontravam na margem resolveram complicar mais a vida dos nossos heróis, isto na prancha 26.

Em Coimbra, depois de tudo montado e feita a inauguração, pensávamos regressar ao atelier, quando nos convidaram para outro trabalho numa das salas da Universidade e tivemos, nós os residentes do atelier, de ficar em Coimbra mais uma semana.

Entretanto, esgotou-se o avanço que eu tinha na história d’O Mosquito e não podia salvar as personagens do perigo em que as deixara, devido ao inesperado aumento de trabalho. Na altura, não havia a facilidade de comunicações que existe hoje e limitei-me a escrever um postal ao Raul Correia, a preveni-lo. Ele ficou desolado e escreveu no jornal «devido a doença do nosso colaborador …», como justificação da ausência das páginas.

Terminada a tarefa das exposições, regressámos finalmente a Lisboa, mas havia trabalhos atrasados no atelier que obrigaram a mais uns serões urgentes.

Página publicada n’O Mosquito nº 1360, de 5/7/1952

Entretanto, o Raul Correia havia-me respondido por carta ao meu postal, e como não tinha outro endereço, enquanto eu estava em Coimbra, enviou-a para casa dos meus pais, onde eu vivia. Havia já umas semanas que O Mosquito não publicava a história, mas como a publicação era bissemanal as falhas foram a dobrar.

A carta de Raul Correia era amarga, embora muito delicada, apelando para o meu sentido de responsabilidade em cumprir os prazos, e depois terminava assim: «seu ex-conde» e assinava. Isto foi o que percebi pela caligrafia manuscrita. Julguei que fazia humor com a situação, que era dolorosa para mim, pois estava muito incomodado por falhar.

Respondi, também por carta, para a nova redacção d’O Mosquito, na Editorial Organizações, explicando que o motivo da falha não era por negligência, mas por um caso de força maior, devido ao meu trabalho base. E, no final, jocosamente acrescentei «ex-plebeu», como réplica ao facto de ele se intitular ex-conde.

Página publicada n’O Mosquito nº 1350, de 31/5/1952, com a respectiva capa

Apressei-me a fazer duas pranchas para finalizar a história (27ª e 28ª) e passei pelo Hotel Avenida Palace, onde o Raul Correia era gerente, para as entregar em mão, por ser mais rápido. Recebeu-me com o seu ar respeitoso e amável, e de repente soltou uma gargalhada espontânea. Fiquei perplexo, pois estava à espera de um ralhete dos grandes.

Explicou-me, de seguida, a sua atitude. O que ele havia escrito no final da carta, era «ex- -corde», o que significa, em latim, «do coração». Eu entendi o «r» por um «n», devido à sua caligrafia, e como não estudara latim desconhecia a frase. Acabámos a rir os dois, pela minha ingenuidade e desconhecimento das línguas mortas.                                                                                                                                                                        (continua)

MEMÓRIAS À VOLTA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (POR JOSÉ RUY) – 1

Iniciamos hoje, com o maior prazer, a publicação de uma série de artigos assinados por um dos nomes mais ilustres da BD portuguesa, cuja longa carreira recheada de êxitos já abarca mais de sete décadas.

José Ruy Matias Pinto é, de facto, um caso espantoso de longevidade e amor à arte da ilustração, com obra dispersa por inúmeros jornais, livros, revistas e álbuns. Ainda hoje a sua actividade se espraia por vários domínios, incluindo o de escritor memorialista, em homenagem, sobretudo, à «época de ouro» da BD portuguesa, durante a qual aprofundou com afã os seus conhecimentos e o seu virtuosismo técnico e artístico, cimentando as relações profissionais e os laços de amizade com outros nomes ilustres da 9ª Arte portuguesa, como Eduardo Teixeira Coelho, António Cardoso Lopes (Tiotónio), Raul Correia, Roussado Pinto, Adolfo Simões Müller, José Garcês, Artur Correia e muitos mais.

Um dos seus maiores títulos de glória é, sem dúvida, o de ser presentemente o único autor de BD (ou histórias em quadrinhos) dessa época que se mantém ainda em actividade, com uma produção vasta e assinalável, mesmo nos últimos anos.

A José Ruy, que muito nos honra com esta valiosa colaboração, os melhores agradecimentos do Gato Alfarrabista Júnior, um blogue que se considera herdeiro do Gato Alfarrabista. Recordamos que José Ruy foi presença marcante na carismática revista O Mosquito, onde colaboraram alguns dos maiores mestres da BD portuguesa, como minuciosamente nos elucida, com a sua prodigiosa memória, nestes primeiros artigos, enriquecidos também com algumas imagens inéditas.

MEMÓRIAS À VOLTA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS (1)

por José Ruy

No início da década de 1950, partilhava um atelier com o Eduardo Teixeira Coelho, na Calçada do Sacramento, ao Carmo, em Lisboa. Por essa altura, colaborámos na exposição de Histórias em Quadrinhos, a primeira feita em Portugal, no Palácio da Independência, e eu esboçara uma prancha, como exemplo do desenrolar do processo de trabalho, para estar exposta [que mostramos a seguir].

Repare-se que as primeiras vinhetas estão ainda em esboço, enquanto a última tem já o acabamento a tinta-da-china. A razão disso é para evitar arrastar o lápis, com a mão, sobre as vinhetas inferiores, enquanto trabalho as de cima. Costumo começar o desenho por baixo da direita para a esquerda, e quando este está coberto a Nankim (tinta da china), sigo para os outros, da última vinheta para a primeira.

Em cada vinheta, esboço ligeiramente a lápis as figuras nas posições que pretendo, e depois utilizo o modelo vivo. Na vinheta 5, só uma das personagens já está desenhada em definitivo. Esta história ficara sem seguimento, pois tratava-se apenas de um exemplo para a referida exposição.

Mas o tema era o da minha preferência, os animais, e o melhor ambiente para os localizar, naturalmente que tinha de ser o continente africano. Comecei a desenvolvê-la com a intenção de a publicar n’«O Mosquito». Dei-lhe o título de «O Reino Proibido», e a trama do argumento andava à volta de uma tribo de certa região de África que se opunha à passagem de um caçador branco pelo seu território, criando uma série de problemas.

Surgira entretanto, havia pouco tempo, a revista «Cavaleiro Andante» e o Coelho, que tinha entre mãos uns trabalhos de publicidade e fizera uma interrupção na colaboração n’«O Mosquito», aconselhou-me a tentar antes publicar a história nessa nova revista, pois como pertencia ao «Diário de Notícias» pagavam melhor a colaboração. Além disso, no «Cavaleiro Andante» fora publicado um pedido da Direcção para que jovens autores enviassem histórias desenhadas, de modo a poderem ser publicadas.

Hesitei, mas ele encorajou-me em face do nível já alcançado. Enrolei três pranchas e levei-as à redacção do «Cavaleiro Andante», que era no próprio edifício do «Diário de Notícias», e deixei-as à secretária de Adolfo Simões Müller, o Director, para apreciação.

Passadas duas semanas, como não recebesse notícias, resolvi voltar lá, pois pensei que podiam ter perdido o meu contacto. Reparei que o rolo estava no mesmo sítio onde o deixara. Achei estranho que em duas semanas não tivessem a curiosidade de ver o que eu levara. Delicadamente disse que pretendia acrescentar algo nos originais e se podia levá-los, o que me pareceu ser um «alívio» para a secretária. Trouxe comigo a história, sem vontade de lá voltar.

Também o E. T. Coelho achou estranho esse desinteresse e o destino da história foi mesmo «O Mosquito» [a partir do nº 1335, de 9 de Abril de 1952].

Página de «O Reino Proibido» publicada n’«O Mosquito» nº 1336, de 12/4/1952

O Raul Correia [director d’O Mosquito] ficou contente e, além dessa narrativa ilustrada, fiquei também a fazer capas sobre outras histórias que o jornal publicava, de origem estrangeira. O Coelho nessa altura, como referi, estava ocupado a fazer publicidade, capas de livros e desenhos para o jornal «O Século».

Deixara um vazio no velho «O Mosquito» [depois da publicação de «Os Doze de Inglaterra»]. O meu papel foi, modestamente, preencher essa lacuna com as minhas parcas possibilidades.

Algumas capas de José Ruy, com destaque para a história «O Reino Proibido». O cabeçalho d’«O Mosquito» foi também desenhado por ele.